Há projetos que nascem sem barulho e acabam por se tornar o som mais necessário do país. Canta-me uma História, o podcast (+ de 175 episódios) de David Antunes, que celebra cinco anos no dia 1 de novembro, com mais um espectáculo ao vivo no CNEMA, em Santarém e já, mais uma vez, com lotação esgotada, é um desses casos raros em que o entretenimento se cruza com serviço público.
O maior mérito do Canta-me uma História é contrariar o ruído do imediato. Num país pequeno e saturado de pseudo-mediatismo, onde a visibilidade e o aparente sucesso se medem quase exclusivamente em cliques, David Antunes faz o oposto, às 4ªs feiras, em directo no youtube e sem filtros, durante 2h/3h (há casos de 4 e 5 horas): senta-se, pega num copo e num cigarro, escuta e dá palco.
Sem pressa, sem guião e sem hierarquias, o programa nasceu no período da pandemia, quando David decidiu criar um espaço onde as pessoas pudessem simplesmente viver o momento, como se o mundo lá fora não existisse. No pós-pandemia, reuniu um grupo de músicos que o acompanha, tanto nos podcasts como nos concertos ao vivo: Emanuel Moura, presença constante e cúmplice, Rui Pereira (oficial) na realização, o Neutro no bar, no passado Jessica Cipriano e, atualmente, Carolina Ligeiro e uma comunidade de em média cerca de 1500 pessoas que todas as quartas-feiras se reúne no (“mirc”) chat do youtube para comentar, sugerir músicas, partilhar gargalhadas e enviar super chats para ajudar a pagar o jantar no Quinzena. O que se vive ali é mais do que um programa, é um ritual de comunhão.
O resultado é uma coleção viva de histórias cantadas. Entre artistas consagrados e nomes ainda desconhecidos, o programa acolhe músicos que procuram acreditar (e que David potencia) podem ser mais do que o circuito de bares onde muitos sobrevivem. As versões que nascem ali só existem naquele instante, e as cumplicidades criadas em frente ao microfone prolongam-se muito para lá das câmaras.
O altruísmo de David Antunes é talvez o segredo mais evidente deste projeto. O músico retira da partilha o seu maior prazer: ver outros crescerem, dar palco e visibilidade a quem ainda espera uma oportunidade. À sua volta, construiu uma comunidade fiel que todas as quartas-feiras, a partir das 22h, se reúne para assistir ao que muitos chamam de “missa”. Há momentos que ficam para sempre, como a arrebatadora interpretação de um dos seus temas a pedido e com a colaboração de Berg, num dos raros momentos em que David cantou no seu próprio podcast.
Muitos espectadores comentam que o programa devia estar na televisão, ter mais destaque, ser mais mediático. Mas a sua maior virtude é precisamente o contrário. Canta-me uma História vive da liberdade de quem não precisa de obedecer a formatos ou tempos impostos. É um espaço de comunhão entre músicos que se divertem a fazer o que mais amam, sem ensaios, sem pressas, sem pretensões.
O programa é uma jam session onde o coração pulsa de forma especial. Entre conversas espontâneas, pianos cúmplices e risos partilhados, devolve humanidade à criação artística e mostra o que tantas vezes fica fora do palco: o talento que ainda não teve tempo de ser descoberto.
Cada episódio é uma casa aberta, onde cabem os que já enchem salas e, sobretudo, os que ainda procuram o seu primeiro público. É ali, nesse espaço sem filtros, que a voz tímida ganha corpo e a música volta a ser gesto e partilha.
Mais do que um podcast, Canta-me uma História é o espelho do que a música portuguesa tem de mais puro: o improviso, a emoção e a coragem de mostrar o que é real. É um ato de resistência contra a pressa e o esquecimento, um lugar onde a arte se apresenta como devia ser, sentada ao piano e de coração aberto, à espera de ser ouvida. É também um refúgio sem fronteiras, onde o amor pela música se sobrepõe ao ruído do ódio, e onde todos cabem, sem filtros, sem idades, sem medo de ser verdadeiros.
Além da oportunidade de assistir à mestria de David Antunes nas teclas, muitos foram os músicos que encontraram ali uma rampa de lançamento. O anfitrião, carinhosamente apelidado de “Júlio Isidro do Verdelho”, viu nascer e crescer carreiras que se expandiram muito para lá daquele estúdio.
O exemplo mais marcante é o de Jessica Cipriano, cuja presença e talento foram determinantes para o crescimento do programa. As suas interpretações tornaram-se momentos icónicos e a sua passagem deixou uma marca profunda. Mas, porque a vida não é perfeita e, sobretudo, não é estática, não foi possível “guardá-la” para que continuasse a semanalmente demonstrar todo o seu talento no Canta-me uma História sendo que, atualmente, segue o seu caminho a solo e no projeto Para Sempre, Marco, mas continua a ser lembrada como uma das vozes que ajudaram a moldar a identidade do podcast e de quem todos sentem saudades.
Entre muitos, outros nomes reforçaram esse legado: Joana Rosa, Los Romeros, Luís Sequeira, Edmundo Inácio, Filipe Maia, Serena Kaos, Sara Ribeiro, FF, Caju, Laura Costa, Tatiana Oliveira, Vanessa Silva, Diogo Leite, Quélia Lopes, Andrea Verdugo, Ana Amorim, Carolina Cardetas, Três Bairros, Francisca Coutinho, Os Moços do Mira, Kate e a mais recente residente, Carolina Ligeiro. Todos contribuíram para esta constelação de autenticidade que é o Canta-me uma História.
Cinco anos depois, o programa continua a ser o que Portugal mais precisa: um espaço livre, onde a música volta a ser partilha, humanidade e verdade. Enquanto houver quem oiça com o coração, haverá sempre uma história por cantar.
Num canal de Youtube com muitas horas de momentos e episódios incríveis, deixam-se aqui mais alguns dos momentos altos do programa ao longo dos cinco anos.
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