«A garota não» (Cátia Mazari Oliveira), lançou recentemente o seu terceiro álbum de estúdio, intitulado “Ferry Gold” que já está disponível no Bandcamp da artista (igualmente para compra digital e em formato físico).
Depois de dois extraordinários álbuns “Rua das Marimbas” e “2 de Abril”, com o qual venceu diversos prémios como o Prémio José Afonso (2023) ou o prémio José da Ponte (2024) e de diversas participações públicas em protestos/manifestações sobre temas como a Habitação, Cátia confirma-se em “Ferry Gold” claramente como, a «Cantora de Intervenção» dos tempos atuais.
“Ferry Gold”, como que consequência dos sinais dos tempos, apresenta uma Cátia mais combativa do que nunca. Em faixas como “A Casa de Bernarda Alba”, “Este País Não É Para Mães”, “Ferry gold”, Fronteiras Invisíveis”, “Levante-se uma escola” (pelo fim das touradas), “Não Inventes” ou “Alaska”, a escrita/poesia mordaz e a crítica frontal às desigualdades sociais e políticas são erguidas como bandeiras por Cátia, sem deixar de haver espaço para temas mais íntimos — como, por exemplo, a relação com a sua mãe.
Segundo a própria autora «Os temas deste disco nascem de textos terceiros, de beats, pinturas, manias, falas parlamentares e notícias. De lugares onde à vezes só a natureza torna os dias sãos. São ensaios livres, observação; nada têm de académicos. São o passo dos dias, casas desarrumadas, famílias de luto. Dentes estragados e punhos cerrados, ironias coletivas, sonhos levantados do chão.»
São 19 temas sobre os quais se deixam aqui pequenas notas:
1 – “A Casa de Bernarda Alba” sobre a peça de Federico García Lorca (1936) que retrata com intensidade o repressivo universo feminino funcionando como uma crítica simbólica à sociedade patriarcal e autoritária da época (e que se tem vindo a tornar novamente mais presente na sociedade).
2 – “Este País Não É Para Mães”, um verdadeiro manifesto contra a discriminação que as mulheres enfrentam nas suas carreiras, com versos incisivos como “de bestial a besta, só ficas até sexta” ou “promoção congelada, não fosses mestruada”, que expõem de forma mordaz o sexismo institucionalizado.
3 – “Aurora”, sobre o poema “Mistérios do toucador” da poetisa de Setúbal (terra natal de Cátia) – Mariana Angélica de Andrade. «A garota não» nesta faixa conta uma história triste entre a constante pressão social exercida sobre as mulheres em terem uma aparência perfeita e o sentimento íntimo (“limpou a cara e sentiu-se bem”) e as relações perversas de (abuso) poder e o assédio sexual no trabalho. (“há que fazer bom uso da dignidade”).
4 – “No Train a Curtir Coltrane” conta na Letra com excertos de Chackras, Prétu Xullaji e explora conceitos como o peso das redes sociais, marcas, identidade e resistência.
5 – “No Love” conta na letra com excertos de “No Love” de Allen Halloween e do poema “Os Lugares” de Maria Teresa Horta. A perecidade dos sentimentos as memórias, a solidão e a desilusão. (“A minha vida é uma roleta com 5 balas no tambor”).
6 – “Ferry Gold”, faixa que dá nome ao álbum, ergue-se como um manifesto contra a “privatização” de Tróia — e de tantas outras “Tróias” — transformadas em resorts de luxo para uma elite. Com versos como “os rios juntam, não partem metade”, a canção denuncia a apropriação dos espaços comuns e a exclusão social mascarada de progresso.
7 – “Os Sapatos da Minha Mãe”, Cátia retrata a impossibilidade da sua mãe em usar os sapatos de salto alto para os “dias de sair”, mas que, por causa do seu cansaço (da vida dura) nunca chegaram a ser estreados. Mais uma metáfora sobre a dureza silenciosa vivida por tantas mulheres , cujos sonhos ficam, muitas vezes, por estrear.
8 -“Não te dês à Tristeza” conta com excertos de “as estradas são para ir” da Márcia. Continuando o registo pessoal, depois da referência aos sapatos, Cátia apresenta como que uma prece/lamento sobre as saudades que tem da mãe e que ficou por dizer. É ao mesmo tempo, um canto de dor e de resiliência — um apelo a seguir em frente, reconstruindo-se a partir da memória e da ausência.
9 – “Levante-se uma Escola”, sobre o poema “as touradas” de Mariana Angélica Andrade, Cátia propõe que se acabe com as Touradas e se levante uma escola nessa praça. (“que se mate a tradição, se a tradição maltrata sem razão”).
10 – “Fronteiras Invisíveis” com excerto do “Poema a Jorge Amado” de Noémia de Sousa, lança uma crítica incisiva às fronteiras — sejam elas físicas, políticas ou ideológicas. Com versos como “quantas mortes ainda cabem na fronteira” e “há sempre quem atire quem não queira”, a canção denuncia as violências silenciosas e explícitas que resultam das decisões de quem desenha os mapas e controla a vida e a morte de quem procura uma vida melhor.
11 – “Limpa Palato” música de Sérgio Miendes (sempre presente nas criações de «A garota não») e voz de João Mota e surge como uma espécie de respiro. Uma criação que nos permite navegar num mar de emoções e reflexão, suavizando o peso emocional deixado pelas faixas anteriores.
12 – “Topiária” uma letra poderosa de Cátia com beat “Auto de Fé” de Sam the Kid sobre a dor da perda e a gestão do tempo e a importância/definição das prioridades na vida e da proximidade com os que são mais importantes (família). É possível (“quero um tempo que aconteça lento de forma bondosa”) sentir o peso da dor da ausência e a reflexão sobre todos os momentos que não se esteve presente. (“ser presente é o oposto de estar em todo o lado”)
13 – “Impossível” Cátia interpreta o poema “Impossível” de Florbela Espanca de forma magistral, dando uma roupagem que amplifica a dor e a incompreensão perante o sofrimento íntimo ser invisível aos olhos dos outros.
14 – “Falemos das Cartas” nesta faixa Cátia pega na correspondência entre Irene Lisboa e Luísa Dacosta, Afonso Duarte ou José Régio para construir uma justa homenagem a uma das mais importantes autoras do movimento literário modernista, com uma obra marcada pela crítica às condições de vida das mulheres e das classes trabalhadoras.
15 – “Não Inventes” faixa composta pelos Poemas “Não Inventes” de José Carlos Barros e “A Cura” de Luís Filipe Parrado excelente para dedicar a contrapartes em desgostos amorosos. (“Não deixes endereços. Por favor:
eu quero é que te fodas, meu amor.”)
16 – “Alaska”, uma criação de João Quadros que começa com “uma estrada que termina no Alaska” como o destino final, onde existe um sinal com a inscrição “deixe aqui os seus sonhos”. A canção transforma a vida numa jornada, onde tudo o que ocorre antes de alcançar o Alaska se torna uma metáfora para a busca incessante por novos começos, a transformação interior e a necessidade de focar na concretização dos sonhos.
17 – “Irmãos de Sangue”, depois das diversas participações de «A garota não» em espectáculos de Sérgio Godinho, nesta faixa Cátia tem oportunidade de interpretar um poema do próprio Sérgio sobre a irmandade na criação e nos ideais.
18 -“O Homem que Viu a Abelha Morrer”, Cátia descreve a vida e a história triste da Abelha que morre no Jardim depois de cumprir a sua missão. A canção parece funcionar como uma metáfora profunda sobre a efemeridade da vida, com versos como “é aqui que fico / findemos as rixas”, sugerindo que, muitas vezes, é a natureza que traz sanidade aos dias. A reflexão sobre o tempo e a mortalidade surge em “o tempo que o Homem usa a morrer”, destacando a inevitabilidade e a fragilidade da existência.
19 -“Vagamente Vaga II”,transporta-nos de volta ao mar, onde o navegar se torna uma travessia sofrida entre as vagas. Um queixume constante e penetrante, como um choro da alma, ecoa na canção, revelando a luta interior e a dor que permeiam essa jornada.
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