Passado o barulho do anúncio e do lead single, o novo capítulo de Rosalía pede que o ouçamos com tempo e sem filtros: “Lux” não entra por causa do trending (apesar de todo o histerismo), entra para colocar em perspetiva uma carreira que começou no Flamenco de raiz, passou pela reinvenção radical do pop latino e agora escala um território litúrgico-orquestral que lhe assenta como evolução lógica e que demonstra aquilo que os mais atentos já sabiam, Rosalía é uma das mais ecléticas artistas do panorama mundial.
A ideia de que Rosalía é “só pop” cai por terra logo nos primeiros minutos: há uma gramática de sala, escrita de longa duração e em múltiplas línguas, vozes que respiram como coro e uma arquitetura dividida em movimentos que pede atenção inteira. O contrário da canção descartável.
Para perceber melhor isto, vale recuar. Antes de lights, TikTok e estádios, houve estudo e palco pequeno: a colaboração com o seu então namorado C. Tangana em “Antes de morirme” (2016).
O começo em nome próprio em “Los Ángeles”, mão na mão com Raül Refree, foi um statement de cantaora moderna a trabalhar repertório tradicional com rigor e risco. Disco que termina com um cover de «I see a Darkness», tema maior da obra de Will Oldham (Bonnie ‘Prince’ Billy) e que uma Rosalía cheia de alma (mas ainda com notórias limitações na pronunciação) decidiu interpretar de forma magistral.
Depois chegou a pop e a visão conceptual rara, entre flamenco com electrónica e R&B. Anos depois, Motomami reescreveu o dicionário do mainstream ao colar reggaeton, bachata, bolero e eletrónica numa assinatura própria.
“Lux” chega depois desse pico com um gesto diferente. O disco foi pensado com orquestra, coro e direção musical que confia no silêncio, na tensão e no timbre como matéria dramática. Em vez de empilhar featurings para fazer barulho, escolhe vozes que acrescentam mundo, da vanguarda ao Fado de Carminho, do Flamenco (Estrella Morente e Sílvia Perez Cruz) à pop de culto de Björk e alinha tudo com uma escrita que cruza santos e profanas, em várias línguas, sem ceder à caricatura turística.
O choque aqui não é de género, é de ambição: transformar a linguagem da canção num oratório moderno que cabe na vida de 2025. Para quem insistir em ver Rosalía como “artista pop”, o disco é talvez o argumento mais claro de que pop, no seu caso, sempre foi método e não jaula ou máquina para fazer dinheiro.
A formação clássica, a disciplina flamenca, a obsessão pelo detalhe e a disposição para reformular o próprio léxico aparecem aqui destiladas numa obra que conversa com a música erudita sem pedir licença e sem pedir desculpa.
No fim, “Lux” não apaga nada do que veio antes, acende o que faltava ver: uma artista que estudou, arriscou e reescreveu as suas próprias regras a cada projeto, a trabalhar agora num registo exigente que muitos evitariam por medo de perder terreno. Em vez disso, ganha escala e profundidade, provando que a sua história nunca foi a de seguir a corrente, mas a de mudar-lhe o curso. Passado o hype, fica o essencial: talento, método e uma visão teimosa de que a canção ainda pode ser lugar de assombro eclético.
No Comments Yet!
You can be first to comment this post!