Entre a Madeira e o mundo, Bia Caboz tem vindo a construir um percurso musical que parte da tradição do Fado para encontrar novas formas de expressão e chegar a públicos que, muitas vezes, nunca tiveram contacto com o género. Desde o orgulho em ressignificar o seu apelido familiar e transformar essa história em identidade, passando pela necessidade de reinventar o Fado sem perder a sua essência, Bia fala-nos nesta entrevista, com franqueza e autenticidade, sobre a sua intuição criativa, a relação com o sucesso e as expectativas externas, demonstrando sempre, a vontade de fazer a sua música viver em palco e além-fronteiras. Fiquem a conhecer melhor o mundo de Bia Caboz.
Ecletismo Musical (EM): Cresceste na Madeira, viveste fases em que a música parecia instável, e depois decidiste abraçar esse risco. Em que momento percebeste que essa instabilidade, geográfica, emocional, sonora deixaria de ser um obstáculo e passaria a ser matéria-prima da tua arte?
Bia Caboz: Vim para o continente com apenas cinco anos, mas a Madeira nunca deixou de ser um lugar presente na minha vida. Passei a infância e a adolescência a regressar à ilha nas férias, e a Madeira foi sempre sinónimo de alegria, liberdade e inspiração.
Na realidade, só voltei a viver na Madeira aos 18 anos, e foi precisamente esse regresso que acabou por ser determinante no meu percurso artístico. Foi lá que tive a oportunidade de criar o meu primeiro espetáculo e de o apresentar num grande palco. Isso dificilmente teria acontecido se estivesse a viver em Lisboa nessa altura, porque para subir a um palco dessa dimensão seria necessária uma estrutura que eu ainda não tinha.
Nunca senti a música como algo instável do ponto de vista geográfico. Pelo contrário: foi exatamente por estar numa ilha, por ser uma artista regional, que tive oportunidades que muitas pessoas não têm em Lisboa. Aquilo que poderia ser visto como uma limitação acabou por ser essencial para o rigor que tenho hoje quando monto e subo a um palco.
EM: Carregas o apelido “Caboz” para o mundo e assumiste-o como bandeira. Esse apelido carrega memória, passado, expectativas ou até estigmas. Que partes desse passado quiseste deixar para trás e que partes decidiste levar contigo?
Bia Caboz: Sempre tive muito orgulho no nome Caboz. O apelido vem do lado da família da minha mãe. Quando era mais nova, sempre que alguém dizia “ela é Caboz”, eu ficava vaidosa, sentia um enorme sentido de pertença.
Os meus avós tiveram 13 filhos, 11 mulheres e 2 homens e passaram por muitas dificuldades. Durante muito tempo, o nome Caboz foi usado de forma pejorativa, e por isso algumas das minhas tias decidiram não o passar às filhas. Havia o receio de que as novas gerações pudessem viver o mesmo que elas tinham vivido, embora o contexto já fosse outro.
Quando decidi usar Caboz como nome artístico, foi uma escolha consciente. É um nome raro, carrega uma história familiar muito forte e vem do lado do meu avô, que tocava música de ouvido, sem formação, mas com uma enorme intuição. Sinto que herdei essa relação instintiva com a música.
No fundo, usar este nome é uma forma de ressignificar essa história e de devolver orgulho a algo que durante muito tempo foi visto como um peso. É levar comigo aquilo que importa e transformar o passado em identidade.
EM: A tua ascensão, das casas de fado tradicionais até à fusão com eletrónica, rap e batidas afro-brasileiras implicou rupturas de imagem, de estilo e de comunidade. Em que medida consideras que essa reinvenção foi um acto de liberdade, de ruptura com algo que amavas ou uma necessidade?
Bia Caboz: Na realidade, foi sobretudo uma necessidade. Uma necessidade de liberdade. Sempre vi o fado como um género com um enorme potencial internacional, tal como o tango ou o flamenco, mas também como uma linguagem que pode chegar às pessoas por diferentes caminhos.
Se não tens uma grande estrutura financeira para levar a música longe de uma forma, tens de encontrar outra. Eu tenho uma irmã dez anos mais nova do que eu e sempre tive a certeza de que, se continuasse a cantar fado exatamente como o cantava nas casas tradicionais, dificilmente alguém da idade dela iria escutar. A minha vontade de levar o fado mais longe passou por encontrar uma ponte com a sonoridade do tempo em que vivemos.
A tradição nunca deixou de estar presente, e não excluo, no futuro, fazer um disco de fado tradicional. Mas naquele momento senti estagnação. Senti que tinha ido até ao limite do que precisava de aprender naquele universo. A partir dali, ficar seria mais repetição do que descoberta.
Há uma diferença entre preservar e estagnar. Eu precisava de continuar a crescer. Essa reinvenção não foi uma rejeição do que amava, mas uma forma de o manter vivo em mim e de lhe dar continuidade de outra maneira.
EM: Depois do enorme sucesso de “Sentir Saudade” (com DJ Kura), “Fala-me a Verdade” (com Piruka) e “Lei do Retorno” (a solo), como sentes a pressão de querer repetir o êxito? A próxima música precisa corresponder a expectativas ou preferes que a música esteja sempre acima do sucesso, independentemente da recepção?
Bia Caboz: Nunca senti pressão para repetir um êxito, porque a minha relação com a música é muito íntima e muito protegida. Confio profundamente na minha intuição. Quando sinto que algo é verdadeiro para mim, sei que esse é o caminho e raramente preciso de validação exterior.
Acredito que a obra que deixamos é aquilo que nos representa depois do nosso desencarne. Partindo dessa ideia, acho importante questionarmo-nos se aquilo que estamos a criar corresponde realmente a quem somos. De que serve deixar uma obra que não seja verdadeira, que exista apenas para agradar a terceiros ou para corresponder a expectativas externas?
Quando peço opinião, faço-o apenas em situações muito específicas. Neste álbum, por exemplo, fiz um rap em que quis confirmar se a melodia e a letra eram credíveis dentro daquela linguagem. Enviei o tema ao Sam The Kid, que fez alguns apontamentos pontuais. Ajustei os lugares que ele identificou, voltei a enviar e quando ele me disse que não mudaria mais nada, tive a certeza de que aquele era o caminho certo.
Não crio a partir do sucesso, mas da necessidade de ser verdadeira. Quando uma canção chega a mais pessoas, muitas vezes é porque toca algo universal, mas isso é consequência, não ponto de partida.
Depois deste álbum, sinto-me ainda mais livre. O meu maior rigor foi garantir que o “Espiral” representasse a minha verdade mais pura. Por isso, foi um disco produzido e escrito por mim do início ao fim, onde nada está lá por acaso.
Saber que essa verdade ficou eternizada dá-me tranquilidade para, a partir daqui, explorar outros caminhos, sempre sem corresponder a expectativas externas. Quem quiser encontrar a minha essência, ela está neste álbum.
EM: A madrinha de fado que escolheste (a Ana Moura) parece ter-te dado mais que conselhos: ofereceu-te um espelho de possibilidades. Que reflexos desse espelho ainda aceitas?
Bia Caboz: Vejo a Ana como alguém que abriu caminhos onde antes só havia mato. Caminhos belíssimos, feitos com coragem. Mas cada artista precisa de abrir o seu. Eu não quero seguir o caminho que ela abriu, estou a abrir o meu, noutro sentido, noutra direção. Como fizeram também outras grandes mulheres do fado, cada uma à sua maneira.
Os reflexos desse espelho que ainda aceito são a coragem, a integridade e a liberdade. O resto pertence ao meu próprio percurso.
EM: Sucesso, streams, visibilidade, marketing, tudo isso pode ser uma prova de aceitação, mas também uma armadilha. Como rejeitas o risco de que a sinceridade se perca em nome do sucesso?
Bia Caboz: Para mim, a sinceridade não é algo que se negocie com o sucesso. É o ponto de partida. Não crio para corresponder a uma lógica exterior.
Os streams, a visibilidade e o marketing fazem parte do ecossistema atual da música e eu não os rejeito. Vejo-os como ferramentas que ajudam a obra a chegar às pessoas e a levar o público até ao palco, que é onde tudo se torna real. Mas nunca podem definir o conteúdo nem a direção da criação.
O marketing, quando é pensado a partir da própria obra, pode ser uma extensão criativa. O problema surge quando começa a anteceder a música. No meu caso, a música vem sempre primeiro. Tudo o resto existe para a servir, não para a moldar.
A forma como evito que a sinceridade se perca é mantendo-me em movimento e não me fixando nos resultados. Celebro quando algo corre bem, mas não construo identidade a partir disso. Sei que o sucesso é passageiro e que a única coisa que permanece é a verdade com que foi feito. É esse critério que guia as minhas decisões.
EM: Imagina que um mecenas te concedesse capital ilimitado. O que farias na música?
Bia Caboz: Se tivesse capital ilimitado, aceitava todos os convites lá fora. Pegava num avião, ia produzir com DJs e produtores internacionais e usava essas colaborações como porta de entrada para festivais onde o fado raramente chega.
Levaria uma melodia única no mundo para palcos que não estão à espera dela. Misturava o fado com linguagens globais e deixava o choque acontecer. Acredito que basta alguém ouvir essa melodia pela primeira vez para não a esquecer.
E, a partir daí, criaria a minha própria label. Um espaço independente, pensado para dar estrutura, liberdade e justiça à criação, sem fórmulas nem concessões. Um lugar onde a arte vem sempre antes do resto.
EM: A propósito: qual consideras ser hoje o “estado d’arte” da música feita em Portugal?
Bia Caboz: Há cada vez mais artistas independentes a surgir e isso muda completamente o panorama da música em Portugal. É um momento mais livre, mais diverso e em constante transformação. Mesmo com alguma confusão natural de um cenário em crescimento, sinto que a música portuguesa está viva e a evoluir.
EM: Que nomes incluirías no teu “Festival Ideal”? (vivos ou não)
Bia Caboz: Provavelmente não seria um festival muito fácil de vender. Mistura universos que não costumam estar no mesmo cartaz e isso podia confundir muita gente. Mas eu iria adorar estar lá.
Palco Português
• Amália Rodrigues
• Ana Moura
• Lucília do Carmo
• Hermínia Silva
Palco Internacional
• Beyoncé
• Amy Winehouse
• RAYE
Palco Brasil
• Alcione
• Zeca Pagodinho
• Mariana de Castro
Palco Eletrónico
• Rüfüs Du Sol
• Bia Caboz
• Keinemusik
• Rivo
EM: Se tivesses de escolher os cinco melhores álbuns de sempre ou os que mais te influenciaram, quais seriam? E porquê?
Bia Caboz:
Back to Black – Amy Winehouse

Frank – Amy Winehouse

Foram fundamentais para mim. Foi com eles que descobri a minha voz, principalmente com um dvd que tinha dela live in London.
Divino Fado – Maria da Fé

Quando comecei a cantar nas casas de fado, a Maria da Fé ofereceu-me o disco Divino Fado. Eu ouvia-o sempre no carro, a caminho do Sr.vinho quando ia trabalhar, e foi um álbum muito importante nesse período de formação e de ligação à tradição.
Desfado – Ana Moura

Da Ana Moura, tanto Desfado como Moura são discos lindíssimos, pela coragem, pela elegância e pela forma como abrem novos caminhos dentro do fado.
4 – Beyoncé

Da Beyoncé, 4 e I Am… Sasha Fierce foram muito marcantes para mim, pela força, pela visão e pela presença artística também tinha dvd e ficava realmente influenciada com a forma como ela monta um espetáculo.
Quintal do Zeca – Zeca Pagodinho

É um disco cheio de parcerias com outros cantores sambistas e não só que está repleto que riqueza é cultura brasileira, foi aí que descobri a Mariene de Castro!
No fundo, são discos muito diferentes entre si, mas todos me influenciaram pela verdade, pela emoção e pela personalidade artística.
EM: Quais são os teus planos para os próximos meses? Para onde vais, o que vais lançar?
Bia Caboz: “Espiral” sai no início do próximo ano e abre um novo capítulo no meu percurso. É um disco pensado para ser vivido, sobretudo em palco, onde tudo ganha outra dimensão.
O que vem aí pede presença. Concertos intensos, momentos que não se explicam totalmente em gravação e uma energia que só faz sentido ao vivo. É nesse lugar que este trabalho se revela por completo.
Sinto que o próximo tempo é de encontro. Quem quiser acompanhar, vai perceber rapidamente que isto não é só sobre ouvir música é sobre estar lá.
Foto: Ruben Branches
Agradecimentos: Bia Caboz, Amandha Monteiro
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