Márcia sempre escreveu a partir de dentro: primeiro em imagens, depois em palavra nua, sempre com uma delicadeza firme que não evita a inquietação. Nesta conversa, fala do início inesperado de uma canção que a marcou, da arte como forma de sobrevivência emocional e da importância de criar no seu próprio tempo.
Uma voz que não procura provar nada, apenas chegar à maturidade de dizer o que é verdadeiro. Para ver e ouvir no dia 19 de novembro, no CCB, em Lisboa, num concerto especial que contará com a presença de Catarina Salinas, Sérgio Godinho e Jorge Palma.
Ecletismo Musical (EM): Começaste a carreira a solo com “A Pele Que Há em Mim”. Como foi crescer como artista à sombra de algo que chegou tão cedo e tão fundo, e que, ainda hoje, é o teu tema mais reconhecido?
Márcia: É de facto o meu tema mais conhecido. Lembro-me bem de pensar, quando o compus, que não queria mostrá-lo a ninguém. Tinha vergonha e achava que era uma canção pouco forte, comparando com o que eu conhecia de música. Isso fez-me aprender muito, e deu-me várias lições; primeiro, que nunca saberemos o mistério que está por trás de um sucesso. E depois; não devemos ser tão rápidos a dizer que não somos suficientes, ou que não fazemos algo suficientemente bom. Devemos fazer o que nos é fulcral fazer, e deixar que as coisas assumam a sua importância e o seu lugar.
EM: “Sei lá de onde venho” (Sei Lá, Ana Márcia, 2025) é uma procura ou uma libertação da necessidade de saber?
Márcia: Creio que é uma procura que começa no início da canção e se satisfaz logo no refrão, porque se revela a resposta ali. A magia da música é essa; as canções parecem escrever-se em resultado quase de um diálogo interno, onde sabemos sempre mais do que aquilo que julgamos saber. Uma especie de dialogo com o Divino.
De modo que, para mim, uma canção é uma revelação.
EM: Nos primeiros discos descrevias-te através de imagens, metáforas, paisagens interiores. Neste, parece que deixas as imagens e ficas nua nas palavras. O que tornou isso possível agora?
Márcia: Em algumas canções passei a ser mais directa, sinto que esse momento aconteceu nitidamente há 10 anos, quando escrevi o meu disco Quarto Crescente (2015). A sensação de segurança é o que permite falar de coisas inseguras, falar de medo só é possível desde um lugar bem protegido, e por aí fora. Acredito que a idade, ou a experiência e as pessoas de quem me rodeio, trazem esse tipo de confiança.
EM: A tua música tem um tempo próprio, mais lento, mais respirado, num mundo que exige rapidez. A tranquilidade com que cantas é algo que nasceste com, ou é algo que foste aprendendo como forma de sobreviver?
Márcia: A tranquilidade com que canto não é, maioritariamente, a mesma com que vivo. Infelizmente o ritmo acelerado está a tomar conta das nossas vidas mesmo que não queiramos, por uma questão muito relacionada com o propósito do trabalho. Há um excesso de produtividade e não sei se saberemos resistir a isso. Espero que sim.
A Arte vive outro tempo e impõe esse tempo sadio. Faz-me sentir muito bem. Não sou tranquila por dentro, diria até que sou bastante ansiosa, mas sei de muitas situações em que cantei para me acalmar a mim própria. Até arrisco dizer que foi por isso que comecei a cantar.
EM: Como lidas com a velocidade do mundo e a forma como atualmente se consome música? A falta de “tempo” para conhecer a obra na sua integralidade é algo que te incomoda, desilude ou motiva?
Márcia: A falta de tempo é uma ideia a que estamos a aderir. Mas não é real. Creio que se combate com a insistência de pôr as mãos na terra, nas tintas, na massa, – no sentido literal. Temos de voltar ao analógico e sentir mais as coisas, em vez de as pensar tanto.
EM: A propósito, qual consideras ser o «estado d’arte» da música feita em Portugal?
Márcia: Cada um faz a música que quer, não tenho absolutamente nada a dizer. Se não gosto, não oiço. Espero que façam exatamente o mesmo com a minha música. Não vou criticar músicos de cuja motivação para criar eu não sei nada.
EM: A tua escrita parece querer consolar, mas também inquietar. Achas que a arte tem esse dever duplo: cuidar e desassossegar? Como vives a tua Voz pública no mundo que vivemos?
Márcia: A Arte não tem dever nenhum. A minha voz pública há-de esforçar-se para dizer isso e para teimar na ideia de que não há necessidade nenhuma de criar Arte se não tivermos nada para dizer. A Arte é expressão humana, é quase uma forma de sobrevivência emocional. Um diálogo com Deus só se tem quando precisamos conversar. Se não é preciso, não vale a pena fazer. Se o fazemos, não é por que nos deve alguma coisa.
Devemos ser gratos a esta enorme capacidade humana que é a criatividade. Quanto mais a trabalharmos, mais feliz serão as pessoas, as sociedades, e o mundo em geral. O Mal tem menos espaço para se instalar em mentes criativas, que pensam e que constroem.
EM: Quando a canção é muito íntima, há medo de que seja demasiado tua,ou confias que a intimidade, quando é verdadeira, é universal?
Márcia: Acredito que a intimidade de cada um é bastante universal. Logo, se eu for honesta, ela vai encontrar-se com os outros e gerar algum conforto. Gosto de pensar que a minha musica aquieta, que é confortável. Gosto de ser um conforto para os outros.
EM: Que nomes colocarias no teu “Festival Ideal”? (Vivos ou não)
Márcia: Lou Reed, Prince, GNR, Sade Adu, Joni Mitchell, Led Zepplin, Cat Power, Rosalia, Stromae, Nick Cave e ainda — Sting, num palco bem recatado, para que cantasse todos os lados B do Soul Cages, que sei que nunca poderei ouvir ao vivo.
EM: Se tivesses de identificar os 5 melhores álbuns de sempre (ou os que mais te influenciaram), qual era a tua escolha? E porquê?
Márcia:
Tracy Chapman – Fast Car
Foi o álbum com que aprendi a tocar guitarra, ouvi-o muito e comecei a tocar só para poder cantar as músicas. Sem Tracy Chapman eu não seria guitarrista.
Jeff Buckley – GRACE

Não se consegue medir o lugar da música que nos entra em determinada idade, com determinadas dores. Foi o caso do Jeff Buckley. Sinto que aprendi muito sobre música, composição, produção, voz e coros com este disco. E aprende-se sobre dor e dúvida, também. Entrou, entranhou-se. Nunca mais saiu.
Joni Mitchell – Travelogue
Um disco que sempre me trouxe muita paz.
Martin Luke Brown – To be a Man
Um rapaz novo que adoro. Ele é maravilhoso e To be a Man é das canções mais lindas que já ouvi.
Bonnie Prince Billy – The letting go
Um álbum que me acompanhou em 2007, quando vivi meio ano em França. É um disco muito mágico, e tem uns arranjos muito em conformidade com a voz e a composição das canções. É um disco lindíssimo.
EM: O dia 19 no CCB aproxima-se. Como imaginas esse concerto? E depois dele, onde te vês a caminhar nos próximos meses?
Márcia: Imagino que seja muito especial, imagino-me feliz e espero estar relaxada ao fim da primeira canção, para poder desfrutar bem dessa noite única e da presença dos meus convidados magníficos. – Catarina Salinas, Jorge Palma e Sérgio Godinho.
A seguir tenho planos muito específicos, uma vez que vou lançar um vinho, e inaugurar a minha primeira exposição de Pintura e Artes Plásticas, a 29 de Novembro, em Baião. São planos muito animadores.
Foto Capa: @estellevalentephotography
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