A Garota Não, Cátia Mazari Oliveira, é uma das vozes mais penetrantes da música portuguesa contemporânea. Destacada ao longo do ano por diversas vezes pelo Ecletismo Musical [Review álbum aqui], mantém, apesar da maior exposição que o seu trabalho e talento tiveram durante 2025, uma coerência, um fulgor e uma militância raros nos dias que correm. Esta curta-metragem é mais um bom exemplo dessa postura artística consciente e intransigente.
Num mundo dominado pelas views, pela urgência do algoritmo e pelo consumo rápido e descartável de singles, Cátia decidiu que o seu novo álbum Ferry Gold não os iria ter. Não por ausência de canções que pudessem cumprir esse papel, mas porque a autora continua a ser quem decide como quer que a sua obra seja escutada, vista e, sobretudo, vivida. Aqui, a recusa do single enquanto produto isolado é também uma recusa de fragmentar um discurso que só faz pleno sentido como corpo inteiro.
Essa opção teve consequências formais claras: não houve lugar para o formato clássico de videoclip, pensado para circular autonomamente e disputar atenção num feed infinito. Em vez disso, surge esta curta-metragem realizada por Pedro Estêvão Semedo, que não ilustra simplesmente canções, mas prolonga o universo do disco; que não serve a música, antes caminha com ela, no mesmo tempo lento, denso e politicamente carregado. É cinema enquanto extensão ética da obra musical, não enquanto ferramenta promocional.
Há nesta decisão uma afirmação de soberania artística cada vez mais rara: a de quem aceita perder alcance imediato para ganhar espessura, de quem prefere construir memória em vez de estatística. Ferry Gold existe assim como um gesto inteiro, fechado sobre si, resistente à lógica do recorte e da distração. E esta curta-metragem confirma que, para Cátia Mazari Oliveira, criar continua a ser um ato de responsabilidade. Consigo própria, com as palavras que escolhe e com o mundo que insiste em interpelar.
O projecto “Quem nesta aldeia morar” assume, assim, uma dimensão simbólica que ultrapassa a simples promoção de um álbum: é uma celebração da interdependência humana, da pertença a lugares e a pessoas, e da forma como a arte pode surgir do encontro entre vozes distintas. A “aldeia” mencionada no título, tanto literal como metaforicamente, remete para a colectividade que molda vidas e cria memórias, especialmente numa sociedade onde a vida urbana muitas vezes dilui as relações comunitárias mais antigas.
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